4 de março de 2013

Ciência e o chá caseiro

Esta reportagem do Fantástico é muito interessante para ilustrar o que foi dito em sala acerca do uso indiscriminado de produtos do tipo 'fitoterápico' sem comprovação científica de sua eficácia.


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FONTE: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1619665-15605-404,00-CHA+DE+MAEBOA+PODE+SER+PERIGOSO+PARA+O+FIGADO.html


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Chegou a hora do doutor Drauzio Varella no Fantástico! Ele vai contar a história de uma moça que, pra melhorar de um problema de digestão, tomou um simples chá, feito com uma plantinha inocente.

Só que a bebida fez mal, a moça quase morreu. E casos como o dela, infelizmente, são comuns, comuns até demais.

“Essa planta se chama mãe-boa. Quando a pessoa está com a urina solta ou então muito presa, toma o chá de mãe-boa que melhora”, garante uma mulher.

“Eu tinha problema de gases. Até para arrotar eu tinha dificuldade. Como ela disse que era bom, eu peguei e tomei”, diz a cabeleireira Lindiane Silva dos Santos.

“No imaginário popular, a medicação natural não tem riscos. Isso não é verdade. Isso precisa ser desconstruído. Em tese, ela é mais perigosa”, alerta o presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia, Raymundo Paraná.

A planta que o povo conhece com o nome de mãe-boa é rasteira, cresce na beirada do mato. Um chá desses parece uma coisa inocente. Mas a verdade é que a mãe-boa nunca havia sido estudada. Os trabalhos feitos na Universidade Federal da Bahia mostraram que ela contém diversos componentes tóxicos para o fígado. Foi o uso continuado desse chá que destruiu o fígado de Lindiane.

“Foi uma doença muito rápida, coisa de dias”, conta a cabeleireira, de 26 anos. Ela vive com o marido no mesmo bairro da mãe e da irmã, Pirajá, na periferia de Salvador, Bahia.

“Eu estava bem de saúde. De repente, dormi. Quando acordei, estava toda amarela”, lembra Lindiane.

Raymundo Paraná é especialista em doenças do fígado. Como presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia, recentemente promoveu um encontro de especialistas internacionais para avaliar os efeitos tóxicos dos remédios.

“Existem estudos de fase 2 e 3 que nos dizem exatamente como a medicação alopática – com todos os problemas e riscos que tem – age e quais são os efeitos adversos”, explica o médico. “Mas em outros compostos isso não existe”.

Lindiane tomou um chá e teve problemas sérios de saúde. “Ela procurou o serviço de saúde e recebeu a receita para o uso dessa medicação mãe-boa, que aliás já era utilizada por outros familiares também por orientação médica. Ela desenvolveu um quadro de uma agressão aguda ao fígado, evoluindo para uma hepatite fulminante”, diz Paraná.

“Eu perguntei à médica o que foi que causou isso. Foi então que me deram o diagnóstico: foi a folha”, lembra Lindiane. Ela conta que o médico que receitou a planta não explicou como preparar o chá.

A pessoa que recebe uma prescrição das mãos de um médico confia. Não imagina que vai tomar um produto tóxico. Como um médico tem coragem de receitar um chá que nunca foi estudado? Um chá de toxicidade desconhecida?

Receitar qualquer medicamento, seja derivado de plantas ou não, sem conhecer as ações e os possíveis efeitos indesejáveis é inaceitável, é antiético.

“A medicina até pode ser chamada de alternativa, mas a ética não. A ética não é alternativa. A ética é igual para todo mundo”, ressalta Paraná.

“Eu tomava o chá duas vezes por dia, de manhã e de noite. O tratamento durou meses até chegar à hepatite”, conta Lindiane.

O fígado não dá sintoma nenhum. O que caracteriza a doença do fígado é o silêncio. O órgão vai sendo destruído, vai sofrendo, sem nenhum sintoma. De repente, a pessoa acorda e está com o olho amarelo. Quando ele dá manifestação é porque não tem jeito, a situação está muito ruim. Foi o caso de Lindiane, que já estava quase morrendo.

“Eu não sentia dor, não sentia nada”, garante Lindiane.

O especialista explica como é possível uma substância tóxica destruir o fígado em um tempo tão curto. “As hepatites tóxicas podem ter evolução grave e rapidamente progressivas. Isso tanto por alopáticos, como por medicamentos que são chamados de naturais, mas que têm um princípio ativo, substâncias que podem interagir com o organismo humano e agredir o fígado”.

Centenas de remédios podem destruir as células do fígado e provocar hepatite fulminante. Esse quadro costuma surgir com duas a seis semanas de uso, mas pode se instalar já nos primeiros dias. Como no início não há sintomas, quando a doença se manifesta os olhos já estão amarelos, o corpo fraco e a coagulação do sangue comprometida. Começam os sangramentos.

“Em um sábado, eu senti dor nas pernas. No domingo já estava toda amarela. Os olhos e o corpo já estavam diferentes. A urina estava escura”, descreve Lindiane. “Foi então que começaram a descobrir que o problema era no fígado. Eu fiquei internada”.

Um dos lobos do fíagdo de Lidiane estava completamente necrosado. O resto do órgão estava muito alterado. O fígado inteiro da cabeleireira pesava cerca de 420 gramas, quando um órgão saudável pesa mais de 800 gramas.

“Eu perdi um coágulo de sangue. Agora, só um transplante, que é difícil”, diz Lindiane.

Para saber se um medicamento está agredindo o fígado, os médicos pedem exames de sangue. Se o médico ou outra pessoa receita uma planta que nunca foi estudada, ninguém faz esses controles laboratoriais, e o fígado pode ser destruído silenciosamente até chegar à hepatite fulminante, uma das causas de transplante.

No Brasil, a estimativa é de que ocorram três vezes mais transplantes de fígado pelo uso de plantas do que pelo uso de medicamentos convencionais.

“O problema pode ser ainda maior porque boa parte dos indivíduos que chegam a esses centros com hepatite chamada grave ou fulminante não reporta o uso dessas medicações, porque considera essas medicações absolutamente inocentes”, diz Paraná.

“Ela disse que o transplante tinha que ser feito com urgência. Eu tinha que conseguir um fígado com urgência, porque não sabia se eu ia passar daquele dia”, conta Lindiane.

A cabeleireira teve muita sorte. Foi salva por um fígado que chegou a tempo e hoje está curada.

“A lição que ficou é nunca mais tomar esse chá”, diz Lindiane.

Mas a mãe e a irmã ainda têm fé no chá de mãe-boa.

Dona Laurenta Augusta da Silva afirma que não tem medo de que aconteça a mesma coisa. “Eu boto pouca folha, de quatro a cinco”, diz a mãe de Lindiane.

“Quando se fala na ciência médica, habitualmente aparece alguém que diz que os médicos que defende isso estão se beneficiando da indústria farmacêutica. Isso não é verdade. Isso é até uma retórica imbecil, sem nenhuma razão, com objetivo de fugir ao debate científico. Nada mais do que isso”, defende Paraná.

O Brasil tem 119 laboratórios que fabricam fitoterápicos. A Anvisa, órgão do governo responsável pela fiscalização de medicamentos, já aprovou 512 remédios produzidos a partir de 162 plantas diferentes. Além desses fitoterápicos, a Anvisa aprovou este ano uma lista de 66 plantas e ervas para fazer chás, com as mais diversas e imprecisas alegações terapêuticas. Elas receberam o nome de drogas vegetais.

“O mundo inteiro tem interesse em fitomedicamentos. Os médicos reclamam que é preciso realizar mais estudos de segurança eficazes“, diz o pesquisador João Batista Calixto, da Universidade Federal de Santa Catarina.

Mais uma informação: esta semana, a Infraero lacrou o laboratório do professor Frazão, na cidade maranhense de Imperatriz. Como o doutor Drauzio Varella mostrou na semana passada, Frazão é um químico que dava consultas e receitava medicamentos em uma área cedida pela Infraero.Segundo a empresa, que é responsável pelos principais aeroportos do Brasil, o professor tinha autorização de usar o local somente para pesquisa, e não para atender pacientes.