Violência
e criminalidade
Violência vem do latim, violentia
que remete à vis: força, vigor, emprego de força física; à potentia:
poder; à dominatus: dominação sobre um território. Chamamos de
autoridade o emprego da força e da dominação. A autoridade, no entanto,
diferencia-se da violência porque aqueles a ela submetidos consideram-na justa
e aceitável. O uso da força e da dominação só se torna violência quando
descumpre acordos e regras pré-estabelecidos, ultrapassando limites aceitáveis
ou que foram acordados.
Falamos em violência quando força e
dominação, percebidas como excessivas, não encontram legitimidade.
Nesse caso, força e dominação se impõem pelo medo e não pelo respeito às regras
prescritas. A diversidade de significados da palavra violência é um indicativo
de que o que é percebido como violento pode variar histórica e culturalmente,
divergindo conforme julgamentos distintos sobre o que é certo ou errado. Na
atualidade, por exemplo, consideramos errado pais e mestres educarem seus
filhos ou alunos fazendo uso de agressões físicas. O recurso à agressão como
corretivo (uma boa surra, na linguagem popular) era considerado legítimo até
recentemente. Era percebido por quem batia, como um ato pedagógico, ou até
mesmo um ato de amor. Do mesmo modo, quem era submetido à repressão ou dano
físico, se considerado justo, não o via como uma ofensa moral ou um insulto.
Assim, cada vez mais, nas sociedades ocidentais modernas, é considerado
ilegítimo e ilegal o indivíduo fazer uso da força física ou da ameaça nos seus
relacionamentos familiares ou na resolução de seus conflitos cotidianos,
ficando esse uso sujeito tanto à reação social quanto a do Estado.
Nem sempre foi assim. Para o
sociólogo alemão Norberto Elias (1939) explosões de violência não eram
controladas por ninguém, eram comuns e não excluíam ninguém da sociedade
medieval, já que os seus autores não eram punidos. Nessa sociedade não havia
poder central suficientemente forte para obrigar as pessoas a se controlarem,
nem interesse nisso. Isto só vai ocorrer com a constituição e desenvolvimento
do Estado Moderno quando os monarcas, destituindo os nobres de poder,
tomando-lhes as armas, passam a concentrar o monopólio do uso legítimo da força
física. Assim como o sociólogo alemão Max Weber (1921), Elias definiu o Estado
Moderno por sua pretensão ao monopólio legítimo da força física. Apenas o
Estado, por meio de seus agentes, torna-se autorizado a recorrer à força física
para manter a ordem vigente, reprimindo, dentre outros, aqueles indivíduos
considerados violentos. O controle sobre a população exercido pelo Estado
Moderno será acompanhado também de mudanças no indivíduo, que passa, de forma
crescente, a desenvolver e internalizar o auto-controle. O comportar-se
adequadamente dominando as emoções torna-se imperativo e é imposto à criança
desde a mais tenra infância, constituindo-se, com o tempo, um hábito; a coisa
certa a fazer. De um lado, o auto-controle é internalizado e, de outro,
demonstrações públicas de emoção e de agressividade são cada vez mais proibidas,
seja pela força da lei, seja pelo constrangimento social. Transformam-se, assim
a percepção e a reação em relação à agressividade e ao comportamento
indesejado. A essa transformação, ocorrida ao longo de séculos, Elias denominou
processo civilizador.
Vários estudos realizados por
historiadores mostraram, mais recentemente, o declínio na Europa, a partir do
século XVI e XVII, do número de crimes violentos, especialmente os homicídios,
tornando-se a queda ainda mais acentuada nos séculos XIX e XX, com a expansão e
universalização da urbanização e da educação. Como Elias, atribuem tal declínio
ao processo civilizador. O processo civilizador atingiu também o aparato
judicial, instituindo padrões de justiça mais racionais e menos arbitrariamente
distribuídos. Com ele emerge, a partir do iluminismo, uma mentalidade mais
humanista em relação aos delitos e as penas. A dissuasão, buscando prevenir o crime por
meio do medo e do exemplo de que este resulta em condenação, ainda hoje
constitui um dos principais pilares do sistema penal moderno. Três objetivos
devem ser alcançados pela punição: certeza, celeridade (rapidez) e severidade
da pena. Mas para dissuadir alguém de cometer crime, a certeza da punição é
mais importante do que o rigor da pena.
Analisando as transformações
ocorridas no século XVIII, o filósofo francês Michel Foucault mostrou como os
castigos corporais em praça pública foram sendo substituídos por formas mais
discretas de se infligir sofrimento, dentre elas a privação da liberdade.
Foucault ressalta a adoção, com a prisão, de novas técnicas de controle, tais
como a vigilância e a disciplina. Tais práticas, desenvolvidas na prisão, são
disseminadas na sociedade, particularmente em instituições como a escola, a
fábrica, o hospital e o exército. Ele nos adverte, que as mudanças observadas
em relação às penas, mesmo as de aparência mais progressista, como a idéia de
reabilitação do condenado por meio de seu isolamento, não devem ser entendidas
apenas como uma humanização dos processos penais. Antes revelam o
desenvolvimento de novas técnicas de exercício de poder e de controle,
atingindo não apenas os corpos aprisionados, mas também as mentes,
adestrando-os. Entretanto, embora a punição tenha saído do espaço público, para
se alojar nas instituições penais, hoje em dia e particularmente no Brasil,
antigas formas de punição continuam sendo amplamente empregadas, sobretudo
quando marginalizam, hostilizam ou exterminam indivíduos identificados como
criminosos.
Com o processo civilizador, a
violência entre as pessoas deixou não apenas de ser considerada legítima, como
também passou a ser criminalizada. Coube ao Estado, tanto a incorporação nos
códigos penais da violência reconhecida socialmente, quanto a identificação do
crime e a responsabilização do autor culminando com a sua punição. É o Estado,
por meio do direito penal e das autoridades encarregadas da repressão, quem
determina o que é crime, quem é o criminoso e como ele deve ser processado e
julgado.
Durkheim: o crime é normal,
necessário e definido pela sociedade
Ainda no final do século XIX, Émile
Durkheim rompe com esse tipo de abordagem determinista centrada na patologia
individual, afirmando ser o crime um fenômeno normal, encontrado em todas as
sociedades, embora não seja sempre definido para os mesmos comportamentos. Para Durkheim, o crime é normal porque sendo
ele um ato que ofende certos sentimentos coletivos, sempre haverá aqueles que
não compartilham desses sentimentos. Cada sociedade é quem define quais atos
são considerados criminosos. É por isso que eles variam de sociedade para
sociedade, como também no tempo. Quem cria o crime é a lei. Sem uma lei ou uma
moral aceita por todos que defina um comportamento como crime, não haverá crime
nesse comportamento. Além de normal, o crime é necessário, porque é por meio da
sua punição que são reforçados os laços sociais e os valores da sociedade.
Diferentemente dos utilitaristas, Durkheim sustenta que “a pena dirige-se aos
homens de bem, e não aos criminosos". São os valores da sociedade que são
reafirmados nos rituais de julgamento. É o que ocorre no funcionamento do
tribunal do júri, onde a lei é personificada nos seus protagonistas (juiz,
jurados, promotor, réu e testemunhas). No tribunal, a reação ao crime é
encenada para a sociedade como um todo, de maneira a reforçar a coesão entre os
seus membros. A moderação das penas nas sociedades modernas e a diminuição dos
homicídios serão explicadas por Durkheim com base na liberação do indivíduo das
responsabilidades coletivas. Muitos homicídios ocorriam nas sociedades
tradicionais em defesa da honra e uma forte pressão social e também uma
auto-exigência levava a que os conflitos não pudessem ficar impunes e fossem
resolvidos recorrendo à violência. Os atos que atingem os indivíduos, agora
destituído de suas obrigações com a coletividade, provocam menos indignação do
que aqueles que ferem diretamente os sentimentos desta coletividade. Ainda
assim, eventualmente, acontece nas sociedades modernas, de alguns atos
reacenderem o horror coletivo. É o caso de crimes considerados hediondos
envolvendo crianças ou perpetrados com crueldade.
Uma das grandes contribuições de
Durkheim é romper com a noção de que o crime está na natureza do comportamento
ao introduzir uma outra noção, mais adequada, de que é o modo como a
coletividade define um ato que o torna criminoso. O crime não está na natureza
do ato, mas no modo como ele é interpretado pela sociedade. Por exemplo, matar
na guerra pode ser um ato heróico, mas matar para obter vantagens egoístas pode
ser um ato criminoso. O ato de matar em si mesmo não é nem heróico nem
criminoso. Quem vai dizer o que ele é, é a sociedade e as circunstâncias em que
ocorre. Esta idéia será retomada muitos anos mais tarde por outros sociólogos,
conforme veremos mais a frente. Finalmente, embora considere normal a
ocorrência de fatos sociais como o crime e o suicídio, Durkheim classifica-os
como anômicos, quando esses ultrapassam um certo número, isto é uma
média considerada estatisticamente normal em várias sociedades. Assim, por
exemplo, é considerado normal, na atualidade, até 9 homicídios por 100 mil
habitantes em grandes cidades. Mas do que isso, já pode ser uma epidemia.